quarta-feira, 15 de julho de 2009

A origem da higiene moderna, o mito de Higia e Panacéia

A dicotomia saúde/doença estava já representada na figura mitológica de Asclépio: Herói homérico, fruto dos amores terrenos do deus Apolo, tinha duas filhas que, para os gregos, personificavam a saúde (Higia) e a terapêutica (Panaceia), figuras estas, aliás, que são invocadas no célebre juramento de Hipócrates (" Juro por Apolo, o médico, por Asclépio, por Higia e Panaceia…")

De Higia (do grego hygieia, saúde) deriva a palavra moderna higiene: práticas e condições conducentes a uma boa saúde. De qualquer modo, o vocábulo grego é, em termos semânticos e conceituais, muito mais rico do que o latino salute (estado de robustez física, ausência de enfermidade ou doença).

Por sua vez, de Panaceia (do grego panakeia), e por via do latim, deriva o vocábulo panaceia (remédio para todas os males ou doenças).

Conta a lenda que o próprio Apolo salvou o seu filho Asclépio, retirando-o in extremis do ventre da mãe, a ninfa Corónis, justamente quando o corpo da infiel amante do deus estava prestes a ser consumido pelo fogo na pira funerária. O nascimento de Asclépio começa, pois, por estar associado à vitória da vida sobre a morte.

Segundo Hacquard (1996), a lenda mais conhecida, respeitante a Asclépio, é a que nos foi relatada por Píndaro.

Entretanto, o filho preferido de Apolo é entregue ao centauro Quíron, que se encarrega da sua educação e o inicia na arte de curar.
Asclépio, dotado de invulgares capacidades (e nomeadamente de sentido de observação), cedo superou o seu mestre em matéria de conhecimentos médicos.

"Certo dia uma serpente surgiu-lhe no caminho, enrolando-se na vara que ele [empunhava]. Asclépio deitou-a por terra e matou o animal. Acontece que, miraculosamente, apareceu uma segunda serpente. Esta trazia na sua boca uma certa planta, com a qual ressucitou o réptil morto.

Este acontecimento, carregado de simbolismo, foi para Asclépio uma revelação. A revelação das virtudes medicinais. E assim, encontramos aqui a origem do caduceu (duas serpentes enroladas à volta de uma vara), que se tornou no emblema do corpo médico" (Hacquard, 1996. 48).

Graças à serpente sagrada que lhe revelava todos os segredos escondidos nas entranhas da terra, Asclépio passou a ter um enorme poder terapêutico: não só o poder de curar a doença e tratar as feridas, como, inclusive, o de ressuscitar os mortos.

Esse poder, de que usava e abusava por razões nem sempre nobres, ter-lhe-ia valido a ira de Hades, o odiado e todo-poderoso deus dos infernos e, naturalmente, do próprio Zeus, o deus dos deuses que viviam no Olimpo. Este acabou por fulminá-lo por ter cometido o pecado de usurpação dos poderes divinos (hybris), ao pôr em causa a ordem natural das coisas e a harmonia universal, de que a doença, a dor, o sofrimento e a morte dos humanos faziam parte integrante.

Aos olhos dos gregos, o castigo de Zeus era também uma lição para todos os médicos, traídos pela ambição do poder, da fama, da glória e do dinheiro: Desaparecido Asclépio e com ele a crença de vencer a morte, Higia é transformada no próprio símbolo da saúde, um símbolo frágil mas extremamente poético e sedutor da felicidade possível que a efémera condição humana podia aspirar neste vale de lágrimas.

Panaceia, por seu turno, representará algo de mais prosaico, corpóreo e terreno: a doença e o seu tratamento.

Tal não impediu, no entanto, que o culto de Asclépio se a mantivesse vivo durante mais de sete ou oito séculos (entre os Séc. V a.C. até às invasões dos bárbaros); aliás, diz a lenda que Apolo imortalizou o seu filho, transformando-o numa constelação (a Serpentária) (Hacquard, 1996. 49).

A simbologia entre as figuras mitológicas de Higia e Panaceia, filhas de Asclépio, continua a ser extremamente actual:

No final deste milénio, Higia representa a arte da saúde, a arte de conservar a saúde (como se dizia até ao Século das Luzes), a prevenção da doença e a promoção da saúde (como se diz hoje).

Panaceia, por sua vez, continua associada à arte de curar, ou seja, à medicina organicista, tecnocêntrica e hospitalocêntrica que triunfou com o positivismo há cem anos, que se desenvolveu tentacularmente com o Estado-Providência e em que ainda hoje se fundam os nossos sistemas e políticas de saúde.

De resto, quase todos os deuses do Olimpo, bem como os semideuses e heróis gregos, tinham algum relação com a saúde e a doença:

Apolo, em primeiro lugar, por ser o deus da medicina antes do seu culto ter sido destronado pelo de Asclépio no Séc. V a.C., de que o grande templo de Epidauro foi o expoente máximo (Charitonidou, 1978); vem de resto à cabeça das figuras mitológicas evocadas no célebre juramento de Hipócrates (Caixa 1); Mas também a sua irmã gémea, Artémis: as estátuas de ambos figuravam, de direito próprio, no templo de Epidauro.

Outras figuras mitológicas poderiam ainda ser citadas:

Atena, a deusa da sabedoria; Hera, a ciumenta mulher de Zeus, protectora do lar, do casamento e das parturientes; Hefesto, o deus do fogo, que teria assistido Zeus no parto de Atena, fazendo-lhe uma trepanação no cérebro; Telésforo, o pequeno génio da convalescença, que também aparece às vezes representado pelos escultores gregos ao lado de Asclépio; E sobretudo Quíron: filho de Cronos, preceptor de Apolo e de Ascléplio, de Aquiles e de Jasão, Quíron foi o mais sábio dos centauros; praticava, entre outras artes, a cirurgia (do grego, cheirougia, acção de trabalhar com a mão, cheir; trabalho manual; prática de uma arte ou ofício), para além de ter chegado a ser o patrono do ensino médico.

Fonte: http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos2.html

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